A guerra na Ucrânia — Não há “fim da história” na Ucrânia, por Scott Ritter

Seleção e tradução de Francisco Tavares

14 min de leitura

Não há “fim da história” na Ucrânia

 Por Scott Ritter

Publicado por em 2 Outubro de 2023 (original aqui)

 

Francis Fukuyama em 2016. (Fronteiras do Pensamento, Flickr, CC BY-SA 2.0)

 

A visão triunfalista da democracia liberal pós-Guerra Fria de Francis Fukuyama – publicada em 1989 – teve um grande ponto cego. Omitiu a história.

“O que estamos a testemunhar não é apenas o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um período específico da história do pós-guerra, mas o fim da história como tal: isto é, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.”

Estas palavras, escritas pelo cientista político americano Francis Fukuyama, que em 1989 publicou “The End of History”, um artigo que virou o mundo académico de pernas para o ar.

“A democracia Liberal”, escreveu Fukuyama, ” substitui o desejo irracional de ser reconhecido como maior do que os outros por um desejo racional de ser reconhecido como igual.”

“Um mundo formado por democracias liberais, portanto, deveria ter muito menos incentivo para a guerra, uma vez que todas as nações reconheceriam reciprocamente a legitimidade umas das outras. E, de facto, há provas empíricas substanciais dos últimos cem anos de que as democracias liberais não se comportam imperialisticamente umas com as outras, mesmo que sejam perfeitamente capazes de entrar em guerra com estados que não são democracias e não partilham dos seus valores fundamentais. “

Mas havia um problema. Fukuyama observou que,

“O nacionalismo está actualmente a aumentar em regiões como a Europa Oriental e a União Soviética, onde há muito se negam às populações as suas identidades nacionais e, também, dentro das nacionalidades mais antigas e seguras do mundo, o nacionalismo está a passar por um processo de mudança. A exigência de reconhecimento nacional na Europa Ocidental foi domesticada e tornada compatível com o reconhecimento universal, tal como a religião três ou quatro séculos antes.”

 

Modelo Global

Este nacionalismo crescente foi a pílula venenosa para a tese de Fukuyama sobre a primazia da democracia liberal. A premissa fundamental da construção filosófica neoconservadora então florescente de um “novo século americano” era que a democracia liberal, tal como praticada pelos Estados Unidos e, em menor grau, pela Europa Ocidental, se tornaria o modelo sobre o qual o mundo seria reconstruído, sob a liderança americana, na era pós-Guerra Fria.

Esses modelos da confluência distorcida do capitalismo e do neoliberalismo teriam feito bem em refletir sobre as palavras do seu arqui-inimigo, Karl Marx, que observou que,

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como lhes apraz; não a fazem em circunstâncias auto-seleccionadas, mas em circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos.”

Pintura a óleo de E. Capiro de 1895 de Karl Marx e Friedrich Engels na gráfica de seu diário alemão Neue Rheinische Zeitung, publicada em Colónia na época da Revolução de 1848-1849. (Wikimedia Commons, Domínio Público)

 

A história, ao que parece, nunca pode terminar, mas é antes reencarnada, uma e outra vez, a partir de um fundamento da história influenciado pelas acções do passado, infectadas como estão com os erros que derivam da condição humana.

Um dos erros cometidos por Fukuyama e pelos defensores da democracia liberal, que abraçaram o seu ideal do “fim da história” para chegar à sua conclusão, é que a chave para a progressão histórica não está no futuro, que ainda não foi escrito, mas no passado, que serve de base sobre a qual tudo é construído.

Os fundamentos históricos são mais profundos do que as memórias da maioria dos académicos. Há lições do passado que residem na alma dos mais impactados pelos acontecimentos, tanto os registados por escrito como os transmitidos oralmente de geração em geração.

Académicos como Fukuyama estudam o tempo presente, tirando conclusões baseadas numa compreensão superficial das complexidades dos tempos passados.

Segundo Fukuyama, a história terminou com a conclusão da Guerra Fria, percebida como uma vitória decisiva da ordem liberal democrática sobre o seu adversário ideológico, o comunismo mundial.

Mas e se o colapso da União Soviética — o evento visto pela maioria dos historiadores como sinalizando o fim da Guerra Fria – não tiver sido desencadeado pela manifestação da vitória sobre o comunismo pela democracia liberal, mas sim pelo peso da história definido pelas consequências de momentos anteriores ao “fim da história”? E se os pecados dos pais fossem transferidos para a descendência de fracassos históricos anteriores?

 

Guerra e Nacionalismo Revivido

Dos muitos pontos de conflito que ocorrem no mundo hoje, um destaca-se como uma manifestação do fascínio contínuo que os adeptos da democracia liberal têm pela vitória sobre o comunismo, que eles pensavam ter sido conquistada há mais de três décadas, ou seja, o conflito em curso entre a Rússia e a Ucrânia.

Os cientistas políticos da Escola “fim da história” de Fukuyama vêem este conflito como derivado da resistência dos remanescentes da hegemonia regional Soviética (isto é, a Rússia moderna, liderada pelo seu presidente, Vladimir Putin) sobre a inevitabilidade da democracia liberal.

Mas uma análise mais aprofundada do conflito Russo-Ucraniano aponta para que os conflitos actuais que nascem não apenas do divórcio incompleto da Ucrânia da órbita soviética/russa que ocorreu no final da Guerra Fria, mas também dos detritos do colapso dos sistemas dominantes anteriores, especialmente dos impérios czarista Russo e Austro-Húngaro.

Mapa do Tratado de Brest-Litovsk mostrando o território perdido pela Rússia bolchevique em 1918. (Departamento de História, Academia Militar dos EUA, Domínio Público)

 

Com efeito, o actual conflito na Ucrânia não tem nada a ver com qualquer manifestação moderna da bipolaridade da Guerra Fria, e tudo a ver com a ressurreição das identidades nacionais que existiam, ainda que imperfeitamente, séculos antes mesmo do início da Guerra Fria.

Para compreender as raízes do conflito ucraniano-russo, é preciso estudar as acções alemãs após o Tratado de Brest-Litovsk de 1918, a ascensão e queda de Symon Petliura e a Guerra Polaco-Soviética — todas anteriores ao Pacto Molotov-Ribbentrop e à dissecação da Galicia ocorrida em 1939 e 1945.

Estas acções foram todas desencadeadas pelo colapso do poder czarista e Austro-Húngaro, e depois unidas por esforços violentos para permitir que as realidades locais moldassem a disposição final de uma região congelada pelo aumento do poder soviético.

O deslocamento sentido por muitos ucranianos hoje de todas as coisas russas pode ser atribuído à tentativa fracassada de formar uma nação ucraniana nascente no rescaldo caótico da Primeira Guerra Mundial e do colapso da Rússia czarista e do Império Austro-Húngaro – tudo antes da consolidação do poder polaco e bolchevique.

 

A breve ascensão e queda de um Estado ucraniano, 1918-1921

A República Popular da Ucrânia, liderada pelo nacionalista Symon Petliura, proclamou a sua independência da Rússia em janeiro de 1918. Fê-lo apoiado pelo exército alemão, que ocupou a república depois de as Potências Centrais, lideradas pela Alemanha, assinarem o Tratado de Brest-Litovsk com a Ucrânia em fevereiro de 1918. (A Rússia e as Potências Centrais assinaram um tratado separado de Brest-Litovsk em março de 1918).

Os ocupantes militares alemães então dissolveram a República Popular Socialista da Ucrânia em abril de 1918, substituindo-a pelo Estado ucraniano, também conhecido como segundo Hetmanato. ((O primeiro Hetmanato foi um estado cossaco ucraniano que existiu na região de Zaporizhia de 1648 a 1764).

Mas o estado ucraniano sobreviveu apenas até dezembro de 1918, quando forças leais à deposta República Popular da Ucrânia, lideradas por Petliura, derrubaram o segundo Hetmanato e recuperaram o controle sobre a Ucrânia.

Durante este tempo, as dimensões físicas da República Popular da Ucrânia estavam em constante mudança. No curto primeiro mandato da República Popular da Ucrânia, dois territórios reivindicados como ucranianos — centrados em Odessa e Kharkov — declararam a sua independência da República Popular da Ucrânia e, em vez disso, optaram por se juntar à Rússia [como quatro regiões hoje optaram igualmente por se juntar à Rússia].

Em novembro de 1918, uma parte dos territórios da Galicia do Império Austro-Húngaro, possuindo uma maioria Ucraniana, declarou a sua independência, organizou-se como a República Ucraniana Ocidental e, em janeiro de 1919, fundiu-se com a República Popular da Ucrânia.

Mas, após a sua criação, a república da Ucrânia Ocidental entrou em guerra com uma Polónia recém-independente e, na sequência da fusão entre a república da Ucrânia ocidental e a República Popular da Ucrânia, a guerra transformou-se num conflito geral entre a Polónia e a Ucrânia.

Um dos principais campos de batalha deste conflito foi o território da Galicia ocidental da Volínia. Foi aqui que as tropas ucranianas realizaram a matança de milhares de judeus, pela qual Petliura foi acusado.

 

Fim da República Ucraniana

A Guerra polaco-ucraniana terminou em dezembro de 1919 com a derrota da República Popular da Ucrânia. Uma das principais razões para esta derrota foi a ascensão do poder soviético quando a Guerra Civil Russa chegou à sua violenta conclusão nos territórios adjacentes à República Popular da Ucrânia, permitindo ao vitorioso Exército Vermelho voltar a sua atenção para a consolidação da autoridade Bolchevique sobre o território da Ucrânia.

Isso levou a um tratado de paz entre a República Popular da Ucrânia e a Polónia, que viu os territórios da antiga República Ucraniana Ocidental serem entregues à Polónia em troca de assistência polaca contra os bolcheviques.

A aliança entre a Polónia e a República Popular da Ucrânia, concluída em abril de 1919, levou a uma ofensiva polaca contra a União Soviética que terminou com a captura de Kiev pelas tropas polacas em maio de 1919. Um contra-ataque soviético em junho levou o Exército Vermelho às portas de Varsóvia, apenas para ser repelido em agosto pelas forças polacas, que começaram a avançar para o leste até que os soviéticos pediram a paz, em outubro de 1920.

Embora vários esforços para acabar com o conflito polaco-soviético tenham sido mediados com base numa delimitação de território conhecida como linha Curzon, em homenagem ao Lorde britânico que a propôs pela primeira vez em 1919, a demarcação final da fronteira foi negociada através do Tratado de Riga, assinado em Março de 1921, que encerrou formalmente a Guerra Polaco-Soviética.

A chamada “linha de Riga” fez com que a Polónia assumisse o controlo de grandes quantidades de território bem a leste da linha de Curzon, levando a um ressentimento de longa data por parte das autoridades soviéticas.

O Tratado de Riga impôs limites a uma região sem ter em conta a composição étnica das pessoas que ali viviam, levando a uma mistura de populações que eram inerentemente hostis umas às outras.

O fim da República Ucraniana Ocidental, em 1919, levou a que a liderança política dessa entidade entrasse na diáspora na Europa, onde pressionaram os governos da Europa a reconhecer o estatuto independente da nação ucraniana Ocidental.

 

Ascensão de Bandera

 

Desfile de tochas de homenagem a Stepan Bandera em Kiev, Jan. 1, 2020. (A1 / Wikimedia Commons)

 

Esta diáspora trabalhou em estreita colaboração com os nacionalistas ucranianos insatisfeitos que se viram sob o governo polaco no rescaldo da Guerra Polaco-Soviética. Entre esses nacionalistas ucranianos estava Stepan Bandera, um adepto de Symon Petliura (assassinado no exílio em Paris em 1926 pelo anarquista judeu Sholom Schwartzbard, que disse estar vingando a morte de 50.000 judeus. Schwartzbard foi absolvido.)

Bandera subiu para liderar o movimento nacionalista ucraniano na década de 1930, aliando-se finalmente à Alemanha nazi após a divisão da Polónia em 1939 entre a Alemanha e a União Soviética, que correu aproximadamente ao longo da demarcação da linha Curzon.

Bandera foi a força motriz por trás das forças nacionalistas ucranianas operando ao lado das forças de ocupação alemãs após a invasão alemã da União Soviética em junho de 1941. Essas forças participaram no massacre de judeus em Lvov e Kiev (Babyn Yar) e no massacre de polacos na Volínia em 1943-44.

Quando a União Soviética e os aliados ocidentais derrotaram a Alemanha, a linha Curzon foi usada para demarcar a fronteira entre a Polónia e a Ucrânia soviética, colocando os territórios ucranianos ocidentais sob controlo soviético.

Bandera e centenas de milhares de nacionalistas ucranianos ocidentais fugiram para a Alemanha em 1944, à frente do avanço do Exército Vermelho. Bandera continuou a manter contato com dezenas de milhares de combatentes nacionalistas ucranianos que ficaram para trás, coordenando as suas ações como parte de uma campanha de resistência administrada por Reinhard Gehlen, um oficial de inteligência alemão que dirigia Foreign Armies East, o esforço de inteligência alemão contra a União Soviética.

Após a rendição da Alemanha nazi, em maio de 1945, Gehlen e a sua organização Foreign Armies East foram subordinados à inteligência do Exército dos EUA, onde foi reorganizada no que se tornou o BND, o serviço de inteligência da Alemanha Ocidental.

A Guerra Fria começou em 1947, após o anúncio pelo Presidente dos EUA Harry Truman da chamada Doutrina Truman, que aspirava a impedir a expansão geopolítica Soviética.

Nesse mesmo ano, a recém-criada CIA assumiu a gestão da organização de Gehlen. De 1945 a 1954, a organização Gehlen, a mando da inteligência americana e britânica, trabalhou com Bandera e a sua organização dos nacionalistas ucranianos (OUN) para direcionar os esforços dos combatentes Banderistas que permaneceram em território Soviético.

Eles lutaram num conflito que custou a vida dezenas de milhares de Exército Vermelho soviético e pessoal de segurança, juntamente com centenas de milhares da OUN e civis ucranianos. A CIA continuou a financiar a OUN na diáspora até 1990.

 

Ligação para os dias de hoje

Em 1991, o primeiro ano da independência da Ucrânia, o neofascista Partido Social nacional, mais tarde Partido Svoboda, foi formado, traçando a sua proveniência diretamente para Bandera. Tinha uma rua com o nome de Bandera em Liviv, e tentou nomear o aeroporto da cidade em homenagem a ele.

Em 2010, o presidente ucraniano pró-ocidental Viktor Yuschenko declarou Bandera um herói da Ucrânia, um status revertido pelo presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que mais tarde foi derrubado.

Mais de 50 monumentos, bustos e museus comemorativos de Bandera foram erguidos na Ucrânia, dois terços dos quais foram construídos desde 2005, ano em que o pró-americano Yuschenko foi eleito.

Na época do derrube do eleito Yanukovych em 2014, os media ocidentais informaram sobre o papel essencial que os descendentes de Petliura e Bandera desempenharam no golpe.

Como noticiou o New York Times, o grupo neonazi Right Sector teve o papel fundamental no violento derrube de Yanukovych. O papel dos grupos neofascistas na insurreição e a sua influência na sociedade ucraniana foram bem divulgados pelos principais meios de comunicação na altura.

A BBC, o NYT, o Daily Telegraph e a CNN informaram sobre o grupo neonazi Right Sector, o C14 e o papel de outros extremistas no derrube de Yanukovych.

Assim, o nacionalismo ucraniano de hoje estabelece uma ligação directa com a história dos nacionalistas extremistas, começando com o período pós-Primeira Guerra Mundial.

 

Onde Começa A História?

Quase todas as discussões sobre as raízes históricas do conflito russo-ucraniano de hoje começam com a partição da Polónia em 1939 e a subsequente demarcação que teve lugar no final da Segunda Guerra Mundial, solidificada pelo advento da Guerra Fria.

No entanto, qualquer pessoa que procure uma solução para o conflito russo-ucraniano que se baseie nas políticas do pós-Guerra Fria entrará em conflito com as realidades da história que antecedem a Guerra Fria e que continuam a manifestar-se nos dias de hoje reencarnando questões ainda por resolver.

Todos eles têm um precedente que data do tumultuoso período entre 1918-1921.

A realidade é que o colapso dos impérios czarista e Austro-Húngaro teve uma influência muito maior na história da Ucrânia moderna do que o colapso da União Soviética.

A história, ao que parece, nunca terminará. É loucura pensar assim. Aqueles que abraçam tal noção simplesmente prolongam e promovem os pesadelos do passado, que assombrarão para sempre aqueles que vivem no presente.

 

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O autor: Scott Ritter é um antigo oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA que serviu na antiga União Soviética implementando tratados de controlo de armas, no Golfo Pérsico durante a Operação Tempestade no Deserto e no Iraque supervisionando o desarmamento das ADM. O seu livro mais recente é Disarmament in the Time of Perestroika, publicado pela Clarity Press.

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